Fonte: TRT-MG
Ontem foi , Dia Internacional da Mulher, foi dia de celebrar as grandes conquistas femininas, especialmente no aspecto profissional. Não há dúvida de que as mulheres avançaram na contramão da cultura machista e patriarcal e na conquista do merecido espaço no mercado de trabalho. Hoje elas exercem profissões que antes eram reservadas aos homens. A luta da mulher foi pioneira e serviu de inspiração para que outros trabalhadores, também discriminados em razão do sexo, conquistassem seu espaço.
Mas vale refletir também sobre o sexismo no trabalho, fenômeno ainda comum nos dias de hoje. O termo “sexismo” representa o conjunto de preconceitos e discriminações que se baseiam no sexo ou na orientação sexual. Geralmente, a pessoa discriminada é colocada em posição inferior, somente por causa da sua identidade sexual. A discriminação contra mulheres é definida como “machismo” ou “misoginia”.
Gaslighting
Ações ajuizadas na Justiça do Trabalho mineira revelam que a mulher moderna ainda enfrenta práticas patronais machistas. Recentemente, a juíza Jéssica Grazielle Andrade Martins, no julgamento realizado na 12ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, identificou um caso típico de gaslighting. Em português, seria algo como abuso emocional, um tipo de violência psicológica em que o abusador tenta confundir e manipular a vítima até que ela mesma se sinta insegura e tenha dúvida sobre a própria capacidade, percepção, competência ou sanidade mental. Palavra de origem inglesa, gaslighting é o termo definido pela psicologia como uma forma de abuso psicológico sutil em que informações são manipuladas, distorcidas ou omitidas pelo abusador, com o objetivo de causar a instabilidade emocional da vítima. No julgamento da ação, a magistrada entendeu que houve nítido gaslighting no ambiente de trabalho. Acompanhe:
Juíza reconhece assédio moral e discriminação de gênero em caso de jovem coagida pelo chefe a pedir demissão
Uma operadora de caixa foi coagida pelo chefe a pedir demissão após a constatação de uma diferença de apenas R$ 100,00 na “sangria”. Na avaliação da juíza responsável pela decisão do caso, o superior se aproveitou da situação vulnerabilidade da empregada, uma jovem de apenas 18 anos, desprovida de conhecimento e preparo suficiente para lidar com a ameaça de dispensa por justa causa que lhe foi feita pelo superior, caso ela não assinasse o termo de demissão. O superior hierárquico ainda ridicularizou a jovem quando ela levantou a hipótese de se aconselhar com sua família, antes assinar a demissão. Para a juíza, a empregada foi vítima de assédio moral, em ofensa aos direitos de personalidade.
A magistrada ainda constatou que a empregada foi vítima de discriminação de gênero, por entender que a forma desrespeitosa com que o coordenador conduziu a situação levou em conta o gênero da jovem, considerando improvável que ele tivesse o mesmo diálogo com um rapaz. Diante dos prejuízos morais causados à empregada, a empresa foi condenada a pagar a ela indenização por danos morais, no valor de R$ 10 mil.
Entenda o caso
A jovem trabalhava como operadora de caixa e a dispensa decorreu de uma diferença de apenas R$ 100,00 na “sangria”. Na ação, pretendeu receber indenização por danos morais da ex-empregadora, afirmando ter sofrido coação por parte do coordenador de pessoal, que teria lhe forçado a assinar um pedido de demissão, mesmo sem entender completamente a situação. O áudio do ambiente, durante a coação, foi captado pela trabalhadora e acolhido pela juíza como prova válida. A representante da empresa, na ocasião da audiência, afirmou que a voz no áudio era de fato do coordenador de pessoal da empresa.
Na sentença, foi transcrito trecho do diálogo entre a empregada e o coordenador, vejamos:
“Coordenador: Eu vou fazer o seguinte. Vou te dar a oportunidade de pedir demissão. Eu não quero ter que te demitir por justa causa não, tá? Se você pedir demissão, eu não te demito por justa causa não, tá? Pode ser assim? Reclamante: Mas, por um erro? Coordenador: A gente não tá falando de um erro leve. (…) Coordenador: Eu não ia tá te orientando sobre uma justa causa se a gente não concluísse que é uma falta extremamente grave. Reclamante: Sim, mas é um erro que pode ser do cansaço. No dia anterior, eu estava no fechamento. Coordenador: Você vai pedir demissão? Reclamante: Vou ver com o pessoal lá em casa. Eu entendi que foi um erro grave, mas não intencional. Coordenador: Tá. Como assim ‘ver com o pessoal lá em casa?’ Quando você entrou na empresa, você não entrou sozinha? (…) Você não é maior de idade? Reclamante: Sim, entrei sozinha, mas eu preciso ver se na lei isso é correto. Coordenador: Se você sair daqui agora, eu já vou considerar que ‘tô’ te demitindo por justa causa”.
Para a juíza, os áudios comprovaram a coação. Algumas circunstâncias do caso, inclusive a pouca idade da autora, chamaram a atenção da magistrada: “É uma jovem, iniciando a vida profissional. Reconheceu que houve um erro. Não obteve, contudo, chance de correção. Não há nos autos nenhuma indicação de que tenha tido oportunidade de devolver o valor. A possibilidade de diferença no caixa, no final de expediente, é tão óbvia que existe, no âmbito laboral, a figura do adicional de quebra de caixa. Ressalto que, no caso sob análise, não há sequer indício de má-fé ou locupletamento ilícito. A autora cometeu um erro. Integra o papel do empregador o caráter pedagógico, no sentido de orientar e corrigir, principalmente uma funcionária tão jovem. Para tanto, existem as figuras da advertência e da suspensão”, destacou a julgadora na sentença.
Gaslighting – Abuso psicológico
Na visão da juíza, é inconcebível admitir-se que o empregador dite os termos de um pedido de demissão, sobretudo quando esse pedido não é de interesse da empregada, mas sim da empresa.
Conforme pontuou, se a empregadora queria romper o vínculo, deveria ter feito isso da forma correta, sem submeter a profissional a uma situação constrangedora. “A escuta atenta dos áudios revela ainda, que, por meio de um tom ameno, o coordenador não apenas constrange a autora, mas o faz por meio de uma manipulação que não é tipicamente agressiva, com gritos ou xingamentos, mas velada, tentando menosprezar as dúvidas legítimas apresentadas pela parte autora”, observou a julgadora. A esse comportamento, completou a juíza, dá-se o nome de “gaslighting”: “Trata-se da tentativa de confundir a percepção da realidade como melhor convém ao interesse do assediador, minando a confiança e fazendo o interlocutor duvidar da própria capacidade e inteligência”, registrou.
A magistrada observou ainda que, em certo momento do áudio, o coordenador diz: “presta atenção, porque vou explicar só uma vez”.
Neste trecho, também transcrito na sentença, a juíza notou que o tom que ele utiliza ao perguntar à jovem se ela não sabe o que é o aviso-prévio evidencia a tentativa de diminuí-la: “Coordenador: Aí você vai colocar embaixo: informo que não irei cumprir o aviso-prévio. Pode colocar aí. Reclamante: O que que é o aviso? Coordenador: É o que não vou descontar de você. Se você não vai cumprir o aviso, eu poderia descontar de você. 30 dias. R$ 1.300,00. Eu não vou descontar. Eu não vou descontar R$ 1.300,00 na sua rescisão. Você vai receber férias, 1/3 de férias, 13º. Reclamante: E o aviso é? Coordenador: O aviso você não vai sofrer o desconto dele na rescisão, porque você não vai cumprir. Reclamante: Entendi, mas aí é como se eu não fosse receber o pagamento e eu estivesse concordando que não vou receber. Coordenador: Não. Aí eu vou ditar pra você. Informo que… Reclamante: Então posso colocar uma ressalva porque eu não sei o que é. Coordenador: Eu vou ditar. Se você não concordar, você não me entrega o documento. Eu vou ditar. Anota aí. Informo que não irei cumprir o aviso-prévio… Reclamante: Essa parte eu não quero escrever, porque não sei o que é. Coordenador: Você não sabe o que é o aviso-prévio? Reclamante: Não sei.”
Assédio moral e discriminação de gênero
Na sentença, o exame da situação revela que havia um homem, ocupante de cargo de chefia, manipulando uma jovem mulher, sozinha, que, ao levantar a hipótese de levar a situação para o conhecimento de sua família, foi ridicularizada, o que atrai a necessidade de um olhar sob a perspectiva de gênero.
Conforme pontuado na decisão, o Brasil é signatário da CEDAW (Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres), obrigando-se a, na forma do artigo 7º, “adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter, com as sanções cabíveis e que proíbam toda discriminação contra a mulher”; a “estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher numa base de igualdade com os do homem e garantir, por meio dos tribunais nacionais competentes e de outras instituições públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de discriminação”; e a “tomar as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa”.
Na decisão, também houve referência ao Decreto 9571/2018, que institui as “Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos” e dispõe, em seus artigo 5º, inciso III, bem como no artigo 6º, incisos I e X, que é obrigação empresarial promover a educação de seu corpo funcional, clientes, terceiros e comunidade, no contexto sobre Direitos Humanos, não discriminação, respeito à liberdade religiosa e de orientação sexual, além do dever de enfrentar os impactos adversos em Direitos Humanos com os quais tenham algum envolvimento, como na espécie, da necessidade de preservação, respeito e reparação aos Direitos Humanos das mulheres contra todas as formas de discriminação e violência, violados no contexto de suas relações de trabalho.
“No caso, é evidente que a condução do coordenador levou em conta o gênero da parte autora, sendo pouco crível que o coordenador conduzisse o mesmo diálogo com um rapaz”, destacou a magistrada. Nesse contexto, considerou reprovável a conduta da empresa, entendendo que ficou comprovado o assédio moral.
Segundo ressaltou a juíza, o assédio moral gera dano, porque fere os direitos da personalidade da vítima, tratando-se de modalidade de abuso de direito, repelido pela lei civil, precisamente no artigo 187 do Código Civil, acrescentando que o dolo e a culpa são elementos que influenciam apenas na fixação da indenização, nos termos do artigo 223-G, VII, da CLT.
Indenização por danos morais
No entendimento da magistrada, estiveram presentes, no caso, os requisitos jurídicos da responsabilidade civil: atuação ilícita, dano e nexo de causalidade entre um e outro, o que gera à empresa a obrigação de reparação. Com fundamento no artigo 927 do Código Civil, fonte subsidiária do Direito do Trabalho, e no parágrafo único do artigo 8º da CLT, diante da configuração dos danos morais sofridos, condenou a empresa a pagar à ex-empregada indenização no valor de R$ 10 mil, a qual reputou ser razoável, tendo em vista a capacidade econômica do ofensor e do ofendido e a natureza da ofensa moral, que o juízo considerou de cunho médio, já que foi praticada mediante conduta dolosa e de forma grave. Também foi levado em conta o efeito pedagógico da medida, a fim de estimular a empresa a zelar por seus empregados e repreender qualquer forma de discriminação de gênero.
O valor da indenização reconhecido à jovem também considerou os critérios do artigo 223-G da CLT. Mas os limites previstos no 223-G, parágrafo 1º, da CLT foram apontados apenas como norma de força informativa, ressaltando a juíza que a Constituição não admite a tarifação dos danos morais por meio de norma jurídica, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 130/09, do STF).
Sentença confirmada pelo TRT-MG
Houve recurso, mas a sentença foi confirmada, no aspecto, à unanimidade, pelos julgadores da Sexta Turma do TRT-MG.
Segundo constou do acórdão, de relatoria do desembargador Anemar Pereira Amaral:
“Ficou evidente que não foi ofertada à reclamante a possibilidade de corrigir seus erros, defender-se, produzir provas ou mesmo ter acesso às provas levantadas contra ela, além de ter sido privada até mesmo do direito de tomar uma decisão livre e consciente acerca da continuidade do seu vínculo de emprego. Também não se pode deixar de sopesar o fato de que se trata de empregada mulher, de apenas 18 anos de idade, especialmente afetada no contexto analisado, havendo prova de que que foi sutilmente manipulada e ridicularizada por funcionário da empresa”. Atualmente, o processo aguarda exame do recurso de revista.